Marina Colassanti
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perde o tempo da viagem.... A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números pra os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber....
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(texto resumido e modificado por JuGioli)
ilustração: Safo
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perde o tempo da viagem.... A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números pra os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber....
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(texto resumido e modificado por JuGioli)
10 comentários:
...me acostumei a não me acostumar com nada,
mas de costume me espanto como costumo pensar que sempre estou mudando.
bjs,
A FAMILIARIDADE CEGA! Esta é uma frase que foi uma revelação para mim e que está bem próxima da idéia deste texto que você escolheu. Esta frase está no livro - "Auto-Engano" - de um autor que gosto muito e que tem sido minha leitura constante, Eduardo Giannetti.
Li muito Marina Colassanti na década de 70/80... mas não tenho ouvido falar muito dela ultimamente... Achei ótimo reler este texto!
Beijos!
Nunca aposte
Num costume
Nem em póstumas
Costumizations
Ótimo texto, modificado e resumido!
Bjs e bom Domingo.
É importante não se acostumar com as limitações, pois elas nos impedem de viver plenamente. Belíssimo texto cheio de sabedoria.
Um grande beijo.
O que seríamos sem as palavras!...lindo e sábio texto...lindamente modificado por vc ...Beijos
gostei muito deste texto, tão humano e verdadeiro. de facto, o coração gasta-se! agradeço também a sua visita e interesse no meu livro. informo que o mesmo só estará disponível em maio. um grande abraço além atlântico ;)
Taciturnidade é uma palavra com uma carga de tristeza muito grande.
Mas é como se fica ao ler este texto: taciturno e mudo.
E não devia.
Marina Colasanti. Adoro ela. Escreve para nos acordar...
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