(Abelardo Morel)
Essa noite um sonho me teve. Não foi como aqueles que se vão logo a realidade te abre as pálpebras. Não me lembro do começo e não sei ao certo se houve fim, mas o meio... Que meio curioso.
Lembro que chegava por uma rua de paralelepípedos à casa de minha mãe. Essa casa azul e verde, térrea, com conjunto de sofás de dois e três lugares na sala e colcha branca de crochê sobre a cama de casal guardava minha mãe.
Nessa casa, minha mãe mantinha um veículo, um carro mesmo, daqueles antigos, concretado na laje da sala. O carro tinha sido do meu avô. Minha mãe me recebeu com café e biscoitos, e foi então que ela disse, pela primeira vez, o segredo de que meu avô tinha sido escritor. A notícia foi arrebatadora. Me tomou a vontade de saber o que aquela alma quieta havia criado.
Era verdade então aquilo de que eu sempre suspeitava. Ele não havia passado pela vida apenas trabalhando, trabalhando, numa perseguição sem descanso pelo sustento, cumprindo papéis sociais que havia calhado de abraçar. Ele tinha criado. Ele tinha guardado um segredo, uma gota de sua reflexão sobre ter sido.
A imagem de meu avô na minha memória modificou-se instantaneamente. Não era mais aquela taciturna figura no canto do sofá que via desenhos animados em calado sorriso e lamentava o noticiário chacoalhando a cabeça em negação. Agora, aquele homem que ocupava o lugar intransferível na ponta da mesa de jantar era um homem vivo. Era alguém que apesar de tudo, descobriu alguma coisa sobre o mundo, e a registrou.
O que seria esse registro? Um romance? Poesia? Que fosse poesia! Não via a hora de meus olhos tocarem as palavras do meu avô... seriam poemas longos, com tal suavidade sonora que me fariam voltar diversas vezes a eles só para ouvir a música que produziam. Ou seria um diário? Lá ele questionaria a razão de tudo aquilo que o fazia acordar diariamente, alimentar o cão, comprar o pão, fazer o imposto de renda. No diário ele contaria porque era calmo, calado, de ferro. Ele contaria suas poucas certezas e entrelaçaria suas dúvidas aos pensamentos mais engenhosos.
Meu avô, de repente, tão vasto. Não podia mais esperar, onde está esta obra, minha mãe, ande logo, me deixe ver! Foi então que ela disse, “Filha, as palavras do pai estão no carro, no porta-luvas, junto a dois maços de dinheiro enrolados em elástico de jornal que ele guardava para o caso de precisar. Você sabe que ele não confiava nos bancos”. O quê? No carro?! Isso significava que estava concretado na laje da sala, em cima de nossas cabeças, toda a imensidão do meu avô, enrolado com dinheiro sem valor, no porta luvas de uma idéia selada no esqueleto da casa de minha mãe.
Como pôde fazer isso? Como pode privar o mundo de saber esse homem, de conhecer a verdade, a vaidade que tinha, seus planos, anseios, anelos, como? Mãe, não faça isso, me diga logo que há um jeito de acessar essa obra! “Não há, não insista. Era desejo de seu avô que isso ficasse no carro, e que o carro ficasse aqui”.
Fui até a cozinha, enchi um copo com água. Metade bebi. O resto coloquei no pratinho de uma planta no parapeito da janela sobre a pia. Saí para o quintal, já era noite. Sentei em uma antiga cadeira de praia, dessas feitas de espaguete de plástico e olhei o céu. Não tinha estrelas. Não tinha nada. Só silêncio. Só escuro. Fundo, fundo. E a idéia do meu avô, que agora, era do tamanho do céu.
Lembro que chegava por uma rua de paralelepípedos à casa de minha mãe. Essa casa azul e verde, térrea, com conjunto de sofás de dois e três lugares na sala e colcha branca de crochê sobre a cama de casal guardava minha mãe.
Nessa casa, minha mãe mantinha um veículo, um carro mesmo, daqueles antigos, concretado na laje da sala. O carro tinha sido do meu avô. Minha mãe me recebeu com café e biscoitos, e foi então que ela disse, pela primeira vez, o segredo de que meu avô tinha sido escritor. A notícia foi arrebatadora. Me tomou a vontade de saber o que aquela alma quieta havia criado.
Era verdade então aquilo de que eu sempre suspeitava. Ele não havia passado pela vida apenas trabalhando, trabalhando, numa perseguição sem descanso pelo sustento, cumprindo papéis sociais que havia calhado de abraçar. Ele tinha criado. Ele tinha guardado um segredo, uma gota de sua reflexão sobre ter sido.
A imagem de meu avô na minha memória modificou-se instantaneamente. Não era mais aquela taciturna figura no canto do sofá que via desenhos animados em calado sorriso e lamentava o noticiário chacoalhando a cabeça em negação. Agora, aquele homem que ocupava o lugar intransferível na ponta da mesa de jantar era um homem vivo. Era alguém que apesar de tudo, descobriu alguma coisa sobre o mundo, e a registrou.
O que seria esse registro? Um romance? Poesia? Que fosse poesia! Não via a hora de meus olhos tocarem as palavras do meu avô... seriam poemas longos, com tal suavidade sonora que me fariam voltar diversas vezes a eles só para ouvir a música que produziam. Ou seria um diário? Lá ele questionaria a razão de tudo aquilo que o fazia acordar diariamente, alimentar o cão, comprar o pão, fazer o imposto de renda. No diário ele contaria porque era calmo, calado, de ferro. Ele contaria suas poucas certezas e entrelaçaria suas dúvidas aos pensamentos mais engenhosos.
Meu avô, de repente, tão vasto. Não podia mais esperar, onde está esta obra, minha mãe, ande logo, me deixe ver! Foi então que ela disse, “Filha, as palavras do pai estão no carro, no porta-luvas, junto a dois maços de dinheiro enrolados em elástico de jornal que ele guardava para o caso de precisar. Você sabe que ele não confiava nos bancos”. O quê? No carro?! Isso significava que estava concretado na laje da sala, em cima de nossas cabeças, toda a imensidão do meu avô, enrolado com dinheiro sem valor, no porta luvas de uma idéia selada no esqueleto da casa de minha mãe.
Como pôde fazer isso? Como pode privar o mundo de saber esse homem, de conhecer a verdade, a vaidade que tinha, seus planos, anseios, anelos, como? Mãe, não faça isso, me diga logo que há um jeito de acessar essa obra! “Não há, não insista. Era desejo de seu avô que isso ficasse no carro, e que o carro ficasse aqui”.
Fui até a cozinha, enchi um copo com água. Metade bebi. O resto coloquei no pratinho de uma planta no parapeito da janela sobre a pia. Saí para o quintal, já era noite. Sentei em uma antiga cadeira de praia, dessas feitas de espaguete de plástico e olhei o céu. Não tinha estrelas. Não tinha nada. Só silêncio. Só escuro. Fundo, fundo. E a idéia do meu avô, que agora, era do tamanho do céu.
~~~~
Text0: Lisie De Lucca
ilustração: Abelardo Morel~ site do artista
~~~~
Queridos amigos, essa minha grande amiga Lisie, além de Educadora
e artista plástica, escreve com a cor da alma, e
com a sua permissão, resolvi postar tão lindo
sonho, para compartilhar aqui, a emoção que tive
ao ler.
9 comentários:
Muito emocionante mesmo, Ju. Acrrdito que deve ser uma sensação de ressurreição encontrar os escritos de alguém, é como se ele tivesse deixado sua alma antes de partir...
Um grande beijo.
Meu Deus, incrivelmente demais!!!
Adorei tudo... do topo ao pé!
Gostaria de ter mais tempo para vir aqui!
Bjs
Ju, gostoso encontrar interlocução com as nossas criações. Obrigada pela oportunidade. Beijos!
Maria Augusta, os sonhos possuem esse mistério, é preciso ouvir, sentir, desse inconsciente que vem à tona querendo dizer, preste atenção as imagens.
Obrigado pela visita.
Francine, seja sempre bem vinda.
Lisie, eu que agradeço a sua permissão em compartilhar esse belíssimo sonho, onde um pouco de nós sempre está lá, quando identificamos momentos, nesta possibilidade de memória com aquilo que precisamos resgatar, nem que seja o sentimento desta continuidade de tempo e espaço de um afeto, de um olhar.
Obrigado pela visita, sinto-me honrada em tê-la aqui.
bjs.
JU Gioli
Lindo texto, e ilustração. Postagem perfeita!Semana cheia de postagens dignas do Blog Viciado!Como fazer? rsrsrs
Lisie,
tens algum parentesco com o meu amigo Luiz Antonio De Lucca?
Lindo texto.
Tertúlia Virtual dia 15. Tema: Brasil.
Cara JU
Belissimo este texto da LISIE!
Belissima este seu trabalho com um maço de jornais...
Nunca eu pensei que o produto que ao longo da vida ajudei a fazer pudesse virar ARTE na mão de uma ARTISTA.
Votos de bom fim de semana.
Beijinhos
G.J.
Postar um comentário